quinta-feira, 25 de maio de 2017

Sobrevida




  Não se trata de sorte ou azar, ninguém escolhe nada, onde irá nascer, que família terá, existem probabilidades a serem consideradas, tempo e lugar são detalhes.
  Todo mundo sabe o tempo exato de quando começou a viver, não o tempo do nascimento, eu falo do tempo em que você tomou as rédeas da sua vida e passou a se sentir parte desse mundo, importante ou não, você começou a se sentir parte de todo o contexto, toda essa engrenagem que damos o nome de vida.
  Me lembro que, no ano de 1982 eu completei 14 anos, estudava, trabalhava e fazia um curso, todo um mundo novo se mostrou e, eu me senti nascer para ele, nesse sentido, esse é o meu ano de nascimento.
  A vida não dá a todos as mesmas oportunidades, criança nenhuma escolhe como e quando virá a sua redenção, as crianças vivem num mundo de adultos, depende deles a sobrevivência, esse é um mundo de adultos e, muitos deles são sádicos e insensíveis e, infelizmente, esse tem participação ativa nos destinos das crianças.
  Muitas crianças não tem uma data que seja um marco de nascimento para a vida e, sim, um tempo exato para começar a morrer, morrer em vida.
  1982 foi o ano que Luciléia, tendo apenas 6 anos de idade, começou a morrer em vida.
  A mãe havia engravidado, aos 13 anos, de um homem violento e gerado uma filha de nome Claudia, ainda na dieta, engravidou outra vez.
  Uma adolescente com uma filha ainda amamentando e grávida de outra menina, não seria a primeira e nem a última a tentar o aborto, várias tentativas e Luciléia insiste em nascer e, em abril de 1976, vem ao mundo a criança de nome Luciléia e, não houve festa, a violência do pai já imperava naquele lar.
  Não irá o leitor precisar consagrar-se mestre para entender que, uma adolescente, com duas filhas pequenas e um homem que costuma beber, é um casamento que tem poucas chances de vingar, para proteger-se e às crianças, Luzia, a mãe fugiu.
  A menina viu seu mundo se modificar, a relativa sensação de pouco conforto deu lugar ao conforto nenhum, na favela do Parque São Domingos não havia água encanado ou energia elétrica, em frente ao barraco o esgoto corria à céu aberto, no entanto, servia para fugir da violência do pai e, uma relativa paz se anunciava.
  Sendo ainda jovem, vinda de Minas Gerais e sem contar com a ajuda de parentes em São Paulo, Luzia pensou que a solução estava em procurar um companheiro, alguém que se pudesse contar, alguém para se amar e ajudar a cuidar das meninas.
  Não se pode enxergar um monstro só botar os olhos, eles andam pela rua e se passam por pessoas comuns e, o Francisco era uma pessoa dessas, alto, de aparência agradável, fala mansa e amigo, bem do tipo que inspira confiança, a moça se apaixonou e, fez o que as moças iludidas com o exterior, geralmente faz, juntou-se a ele, trouxe-o para o seu lar.
  Nesse primeiro instante, o Francisco era um homem bom, cumpridor de seus afazeres como marido, a moça trabalha de auxiliar de limpeza e, não demorou a ficar grávida de novo.
  Monstros nascem monstros, só que disfarçam esse comportamento por um tempo indeterminado, um dia a máscara cai, muitas vezes o álcool é a desculpa que faltava e, Francisco começou a consumi-lo.
  A pessoa educada e bem-humorada deu lugar ao cavalo, agora ele batia na esposa e nas meninas, negava-lhes alimentos e humilhava-as em público.
  No entanto, o monstro de verdade, na verdadeira acepção da palavra... só Luciléia viu e sentiu.
  No ano de 1982, enquanto a mãe saía para trabalhar e a irmã mais velha estava na escolinha, com a desculpa de dar banho na segunda, passou a tocar-lhe nas partes íntimas.
  A menina começou a morrer.

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