Não se trata de
sorte ou azar, ninguém escolhe nada, onde irá nascer, que família terá, existem
probabilidades a serem consideradas, tempo e lugar são detalhes.
Todo mundo sabe o
tempo exato de quando começou a viver, não o tempo do nascimento, eu falo do
tempo em que você tomou as rédeas da sua vida e passou a se sentir parte desse
mundo, importante ou não, você começou a se sentir parte de todo o contexto,
toda essa engrenagem que damos o nome de vida.
Me lembro que, no
ano de 1982 eu completei 14 anos, estudava, trabalhava e fazia um curso, todo
um mundo novo se mostrou e, eu me senti nascer para ele, nesse sentido, esse é
o meu ano de nascimento.
A vida não dá a
todos as mesmas oportunidades, criança nenhuma escolhe como e quando virá a sua
redenção, as crianças vivem num mundo de adultos, depende deles a
sobrevivência, esse é um mundo de adultos e, muitos deles são sádicos e
insensíveis e, infelizmente, esse tem participação ativa nos destinos das
crianças.
Muitas crianças não
tem uma data que seja um marco de nascimento para a vida e, sim, um tempo exato
para começar a morrer, morrer em vida.
1982 foi o ano que
Luciléia, tendo apenas 6 anos de idade, começou a morrer em vida.
A mãe havia
engravidado, aos 13 anos, de um homem violento e gerado uma filha de nome
Claudia, ainda na dieta, engravidou outra vez.
Uma adolescente com
uma filha ainda amamentando e grávida de outra menina, não seria a primeira e
nem a última a tentar o aborto, várias tentativas e Luciléia insiste em nascer
e, em abril de 1976, vem ao mundo a criança de nome Luciléia e, não houve festa,
a violência do pai já imperava naquele lar.
Não irá o leitor
precisar consagrar-se mestre para entender que, uma adolescente, com duas
filhas pequenas e um homem que costuma beber, é um casamento que tem poucas
chances de vingar, para proteger-se e às crianças, Luzia, a mãe fugiu.
A menina viu seu
mundo se modificar, a relativa sensação de pouco conforto deu lugar ao conforto
nenhum, na favela do Parque São Domingos não havia água encanado ou energia
elétrica, em frente ao barraco o esgoto corria à céu aberto, no entanto, servia
para fugir da violência do pai e, uma relativa paz se anunciava.
Sendo ainda jovem,
vinda de Minas Gerais e sem contar com a ajuda de parentes em São Paulo, Luzia
pensou que a solução estava em procurar um companheiro, alguém que se pudesse
contar, alguém para se amar e ajudar a cuidar das meninas.
Não se pode enxergar
um monstro só botar os olhos, eles andam pela rua e se passam por pessoas
comuns e, o Francisco era uma pessoa dessas, alto, de aparência agradável, fala
mansa e amigo, bem do tipo que inspira confiança, a moça se apaixonou e, fez o
que as moças iludidas com o exterior, geralmente faz, juntou-se a ele, trouxe-o
para o seu lar.
Nesse primeiro
instante, o Francisco era um homem bom, cumpridor de seus afazeres como marido,
a moça trabalha de auxiliar de limpeza e, não demorou a ficar grávida de novo.
Monstros nascem
monstros, só que disfarçam esse comportamento por um tempo indeterminado, um
dia a máscara cai, muitas vezes o álcool é a desculpa que faltava e, Francisco
começou a consumi-lo.
A pessoa educada e bem-humorada
deu lugar ao cavalo, agora ele batia na esposa e nas meninas, negava-lhes
alimentos e humilhava-as em público.
No entanto, o
monstro de verdade, na verdadeira acepção da palavra... só Luciléia viu e
sentiu.
No ano de 1982,
enquanto a mãe saía para trabalhar e a irmã mais velha estava na escolinha, com
a desculpa de dar banho na segunda, passou a tocar-lhe nas partes íntimas.
A menina começou a
morrer.